O papel da big tech nas eleições brasileiras de 2022, parte 1
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Perto das 19h30 do dia 1º de dezembro de 2022, o coronel Jean Lawand Junior, subchefe do Estado-Maior do Exército, abriu o WhatsApp e gravou uma mensagem de áudio para um colega do Exército. Nela, não existe espaço para subjetivo: Lawand clama para que “ele dê a ordem que o povo tá com ele”.
O “ele” na mensagem se referia ao ainda Presidente da República, Jair Bolsonaro, a um mês de sair do Palácio após ser derrotado nas urnas cinco semanas antes pelo agora presidente Lula. O destinatário da mensagem de Lawand era o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Cid era uma espécie de braço direito, faz-tudo do ex-presidente — onde estava Bolsonaro, estava Cid a tiracolo carregando pasta, celulares e afins.
As mensagens foram reveladas em relatório produzido pela Polícia Federal após a apreensão do celular de Cid na operação que o prendeu em maio por falsificar atestados de vacinação contra a covid-19 para si mesmo e família e Bolsonaro e família. O conteúdo estarrecedor do relatório foi publicado inicialmente pela revista Veja. No celular e no armazenamento em nuvem de Cid, a Polícia Federal encontrou o plano bolado após a derrota nas eleições para questionar o resultado das urnas e manter Bolsonaro no poder usando as Forças Armadas.
Em outras palavras: um golpe de estado.
Outras mensagens de Lawand reveladas pela PF mostram uma articulação silenciosa dentro das Forças Armadas para dar suporte ao golpe:
“Em uma outra mensagem, Lawand retransmite a mensagem de um amigo que afirma ter se encontrado com o general Edson Skora Rosty, subcomandante de Operações Terrestres, e este teria lhe assegurado que se ‘o EB receber a ordem, cumpre prontamente’, mas, ‘de modo próprio, o EB nada vai fazer porque será visto como golpe. Então, está nas mãos do PR’. EB é a sigla do Exército Brasileiro. PR é uma referência ao ex-presidente Bolsonaro. ‘Se a cúpula do EB não está com ele, de divisão para baixo está’, reforça.”
O golpe não era bravata. Fora a costura sem alarde de uma rede golpista, com consultas sobre quebra de hierarquia para questionar as urnas e jogar no lixo a democracia, a PF também encontrou um documento de três páginas nos arquivos de Cid chamado “Forças Armadas como poder moderador”1. O documento, enviado por Cid para si mesmo no WhatsApp como backup em 28 de novembro de 2022, é a receita de bolo do golpe engendrado pelo bolsonarismo. Eu também tenho um grupo comigo mesmo no WhatsApp para backups, mas em vez de documentos golpistas ele tem majoritariamente códigos de barras de contas para pagar.
Abre aspas de novo para a Veja:
“O presidente da República encaminharia um relato das inconstitucionalidades praticadas pelo Judiciário aos comandantes das Forças Armadas, que avaliariam os argumentos. Se concordassem, nomeariam um interventor investido de poderes absolutos. De início, ele fixaria um prazo para o ‘restabelecimento da ordem constitucional’. Na sequência, suspenderia decisões que considerasse inconstitucionais — a diplomação de Lula, por exemplo —, afastaria preventivamente os ministros do STF — Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que na época integravam o TSE —, convocaria os substitutos — Kassio Nunes Marques, André Mendonça e Dias Toffoli —, abriria inquéritos para investigar as condutas de cada um dos magistrados e marcaria uma data para a realização da nova eleição presidencial — o que poderia acontecer em um mês, um ano ou quando os militares concluíssem que a ‘ordem constitucional’ estivesse recuperada.”
O site Poder360 publicou o relatório de 60 páginas da PF na íntegra, caso você queira ler todas as mensagens trocadas por Cid e seus contatos, incluindo o documento para dar um verniz legalista no golpe de estado planejado.
O documento de Cid não é o único encontrado pela PF com pessoas muito próximas de Bolsonaro. Em operação para investigar os responsáveis pela depredação golpista das sedes dos três poderes em 8 de janeiro, a Polícia Federal encontrou na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e secretário de segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, a minuta de um decreto para instaurar estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Estado de defesa é um mecanismo previsto pela Constituição Federal para “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. Valeria para regiões metropolitanas ou até o país, mas estado de defesa em um prédio é uma bizarrice constitucional, concordam especialistas ouvidos quando a minuta foi trazida a público.
Abre aspas para o coordenador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Renato Ribeiro de Almeida, em entrevista ao G1:
“É golpe. Não existe uma previsão legal para isso. Não existe no estado democrático de direito. É um ato preparatório de crime. Se fosse colocado em prática, levaria à prisão de Anderson Torres e do próprio Jair Bolsonaro.”
O documento encontrado com Cid. A minuta do decreto de estado de defesa encontrada com Torres. Pouco mais de seis meses após Bolsonaro sair da presidência, a PF já achou dois planos para golpear a democracia no Brasil com o elã de constitucionalidade. Em 1964, as Forças Armadas também tentaram cobrir com um véu de legalidade o golpe de estado que depôs João Goulart e mergulhou o Brasil em uma ditadura militar brutal durante 21 anos. É provável que existam mais informações ainda não descobertas ou reveladas sobre estes e potenciais outros planos golpistas do bolsonarismo — notícia publicada pela coluna Radar, também da revista Veja, dá conta que nova operação da PF deflagrada em 15 de junho encontrou “um mapa da mina” no celular do senador Marcos do Val.
Fora aquela lenga-lenga de “tirado de contexto”, a resposta padrão do bolsonarismo até agora tem sido a de que “fizeram sozinhos, Bolsonaro não sabia de nada”. Se você acredita na teoria de que o principal beneficiado pelo golpe de estado não estaria não só a par, mas mergulhado até o pescoço nos planos, eu tenho um Chevette 73 a álcool para te vender. Ou como o Celso Rocha de Barros coloca com a competência costumeira em coluna publicada em 17 de junho no jornal Folha de S.Paulo:
“Se for verdade, Cid tentou organizar um golpe por Jair, sem combinar com Jair. Seria uma espécie de golpe-festa surpresa. Como seria isso? Imagino que Michelle seria encarregada de tirar Jair de casa para fazer alguma dessas coisas que todo casal faz junto, como extravio de joias ou rachadinha. Na volta ao Alvorada, um Bolsonaro algo perplexo encontraria o palácio às escuras. Quando acendesse a luz, os chefes das Forças Armadas bateriam palmas, gritariam ‘Surpresa!’ e Ives Gandra sairia de dentro do bolo, vestido de Marilyn Monroe, cantando ‘Happy golpe, Mr. Presideeeeeeent2.’”
O risco de golpe de estado não era paranóia, fantasia, exagero de quem via ameaças reiteradas do político no cargo mais relevante da República a todas as camadas do Estado Democrático de Direito. É um fato, inegável, cristalino. A articulação, como é praxe em golpes do tipo, foi feita por figuras no entorno do principal beneficiado, Jair Bolsonaro, mas o caminho que levou à barbárie do 8 de janeiro e da ameaça democrática envolveu uma série de instituições, figuras e setores. Um deles é a mídia — ou o que entendemos por mídia naquela época. É preciso exaltar as paixões, enquadrar na legalidade o crime, trazer as massas para seu lado. Em 1964, alguns dos jornais mais importantes do Brasil apoiaram publicamente o golpe.“’Vitorioso o movimento democrático’”, estampava a manchete do Estado de S. Paulo de 2 de abril. Na capa d’O Globo do mesmo dia, o título do editorial foi “ressurge a democracia!” Como bem pontua o jornalista e escritor Mario Magalhães, “em 1964, a imprensa disse sim ao golpe”.
Em 2023, a mídia continua a ter jornais, mas há um outro arranjo, mais fragmentado, quase caleidoscópico. A internet quebrou o monopólio de emissão, as redes sociais conectaram a multidão e seus algoritmos propagaram conteúdo de forma automática a desconhecidos. A internet desintermedia o discurso político, a capacidade de falar diretamente aos eleitores e correligionários sem precisar passar pelos filtros da mídia estabelecida. A cacofonia se forma com milhares de influenciadores ganhando relevância e não houve grupo político que mais cedo entendeu e melhor explorou essa capacidade de articulação do discurso político (para convencer ou assediar) online que a extrema-direita.
Como a gente já falou no Tecnocracia #43 sobre o 6 de janeiro trumpista nos EUA, essa nova estirpe de neo-autocrata digital começa em meme e termina em tentativa de golpe de estado. No Brasil não foi diferente. A base da comunicação desta extrema-direita, tanto lá como cá, sempre foi a big tech. O caminho que levou aos documentos golpistas de Cid e Torres foi pavimentado pelas plataformas de redes sociais. No terceiro episódio da quinta temporada do Tecnocracia, a gente vai falar do papel prático que Facebook, Google, Twitter, Telegram, Kwai e TikTok tiveram nas eleições mais relevantes do Brasil desde a redemocratização. A gente vai perfilar fatos para entender como a História (com h maiúsculo) lembrará das plataformas nas eleições brasileiras de 2022. O Tecnocracia é um podcast sem periodicidade fixa que martela num tema por entender sua gravidade para a sociedade.
“Ah, Guilherme, mas eu já sei sua opinião sobre isso.” É exatamente por isso, bonitinho e bonitinha, que este episódio vai ser uma colagem de notícias e análises para te ajudar a fundamentar a minha opinião. Outra coisa: muito do que falarei hoje envolve meu trabalho e/ou da Novelo Data, minha empresa. Quando for o caso, eu vou ser explícito e 100% transparente. Dito isso, comecemos.
A vida é complicada: nem todo vilão é só mal, nem todo herói é feito só de virtudes. Em quase todo aspecto da vida há nuances, filigranas que precisam ser consideradas para se ter um entendimento pleno do que se passa. É bom a gente ter isso bem claro na cabeça durante o episódio. A atuação da big tech durante as eleições de 2022 e o consequente planejamento e semi-execução de golpe de estado é feito, em diferentes doses, de ação, omissão, enganação e incentivos a comportamentos enganosos e, em alguns casos, criminosos. É uma atuação que se separa em diferentes facetas que trabalham simultaneamente para grupos diferentes.
A primeira fase se dá na tentativa de passar a impressão de normalidade e transcorre durante toda a campanha eleitoral, de 2021 ao anúncio dos vencedores no segundo turno. Há, inicialmente, a tentativa de se mostrar preocupados sobre o processo eleitoral, com acordos firmados com instituições nacionais, e abertos a dialogar com a sociedade civil, com reuniões com pesquisadores e ativistas que acompanham o pleito e avisam sobre os riscos. Há comunicados distribuídos à imprensa, quase sempre indiretos, sem muitas informações, dezenas de palavras escolhidas por comitê para sugerir preocupação e ação. E há também ação, num ritmo menor do que especialistas da área sugeriam como necessária para conter desinformação sobre fraudes nas urnas e ataques ao sistema eleitoral brasileiro.
Este vai ser o primeiro episódio do Tecnocracia em capítulos. O primeiro vai cobrir a campanha. O segundo vai pegar primeiro e segundo turnos, a posse e o 8 de janeiro. Para entender a atuação por completo, é preciso costurar os retalhos e organizá-los cronologicamente. A gente começa com o período pré-eleição.
Pesquisadores, centros de pesquisa e organizações da sociedade civil avisavam desde 2020, após a eleição municipal, que as eleições de 2022 tinham todo potencial de ter problemas sérios de desinformação, articulação a violência e incentivo a golpe de estado. Afinal,
A desconfiança era totalmente justificada: em 2020, a tentativa de golpe de estado nos Estados Unidos durante a certificação no Senado norte-americano da vitória de Joe Biden contou amplamente com as ferramentas e a omissão da big tech. Reportagem do New York Times mostra como o chamado movimento “Stop the steal” se organizou em grupos do Facebook. Se já faltava interesse à big tech em desmantelar organizações golpistas em seus serviços no seu principal mercado, que dirá em um mercado periférico? A gente já falou no Tecnocracia #59 como as operações locais de gigantes de tecnologia são, basicamente, carimbadores de pedidos: há pouco desenvolvimento local (a exceção é o Google) e a prioridade é adaptar os produtos para o mercado nacional quando necessário, estabelecer relações comerciais e encher o cofre.
A suspeita se torna ainda mais justificada após a Meta, sem muito alarde, desmontar sua equipe dedicada à integridade eleitoral. O mundo só soube do desmonte por reportagem do jornal New York Times em junho de 2022, a dois meses de começar a propaganda eleitoral no Brasil:
“O número de funcionários cuja função exclusiva é se focar nas eleições é de 60, queda em comparação aos mais de 300 em 2020, segundo funcionários. Centenas de outros participam de reuniões sobre eleições e são parte de times cross-functional, nos quais trabalham em outras questões. Divisões que criam software para realidade virtual, um componente chave para o metaverso, foram expandidas.”
Em outras palavras: mesmo depois do trumpismo se organizar em seus grupos para tentar dar um golpe de estado, o Facebook achou de bom tom encolher em 80% a equipe que garantia a integridade do debate eleitoral, enquanto contratava gente para o metaverso. Para que cuidar da vida real quando se pode focar — de novo — no metaverso?
As eleições de 2020 no Brasil deixaram uma série de lições. A mais fundamental de todas, a ser testada novamente dois anos depois, era que a autorregulamentação vigente na moderação das plataformas era insuficiente. Abre aspas para o estudo “Desinformação on-line e eleições no Brasil: a circulação de links sobre desconfiança no sistema eleitoral brasileiro no Facebook e no YouTube (2014-2020)”, feito pelos pesquisadores Marco Aurélio Ruediger, Amaro Grassi, Tatiana Dourado, Lucas Calil, Victor Piaia, Sabrina Almeida e Danilo Carvalho, da Fundação Getúlio Vargas (FGV):
“O volume de publicações que confronta o sistema eleitoral saltou exponencialmente, como previsto, no ano de 2018, no contexto da corrida presidencial, mas essa tendência se mantém elevada ao longo de 2020. (…) O ano de 2020 já desponta como o segundo com mais conteúdos sobre o tema no período, mesmo contando com apenas nove meses de coleta.”
Era algo notoriamente sabido por quem pesquisava a área e, suspeito, pelo Tribunal Superior Eleitoral também. Mas é só suposição.
Por isso a enorme curiosidade para destrinchar, em fevereiro de 2022, os acordos que as plataformas fecharam com o TSE para garantir a integridade eleitoral oito meses adiante. Foram fechados acordos com oito redes sociais: Facebook, WhatsApp, Instagram, Twitter, Google, YouTube, Kwai e TikTok. A bem da verdade foram acordos com cinco empresas responsáveis por oito serviços, mas deixemos passar esta tecnicidade. Aqui o arranjo é junto, porém separado — tal qual balde de caranguejo, cada rede social responde por si mesmo, mas a cagada de uma atinge todas as outras. A teoria se comprovaria no mês seguinte, mas daqui a pouco a gente fala sobre isso, assim como o acordo fechado com o Telegram.
Os acordos fechados fazem parte do Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação da Justiça Eleitoral, instituído pelo TSE em agosto de 20213. Nenhuma das plataformas é boba. Todas sabiam que, ao assinar os acordos, era bom que trouxessem compromissos firmes. E o que elas trouxeram? Cada uma das redes vai apresentar o que trouxe ao TSE nas vozes de ouvintes convidados. Ah, o Medo e Delírio em Brasília vai me permitir replicar o background sonoro. Vamos lá.
Começa com o Facebook:
“A integridade das eleições no Brasil é uma absoluta prioridade para o Facebook e o Instagram. E esse trabalho, desenvolvido com o TSE ao longo dos anos, e em especial no ano passado, foi fundamental para consolidar as diversas iniciativas que foram pactuadas (…) Uma vez recebida a denúncia, ela será analisada pela Meta, proprietária dos aplicativos, e se o conteúdo reportado violar as políticas das plataformas, será removido.”
A rede anunciou um megafone para o TSE divulgar mensagens acerca das Eleições 2022, rótulos eleitorais para posts no Facebook e Instagram, stickers e chatbots no Instagram. Esses penduricalhos serão um padrão.
O Google/YouTube:
“Cientes de que o trabalho de enfrentamento da desinformação é algo perene e contínuo, desde 2021 a gente tem trabalhado com o TSE nesse sentido.”
O Google anunciou treinamento para funcionários do TSE e TREs, a abertura de anúncios políticos, destaque de conteúdo cívico na Play Store, “medidas para que usuários possam ter acesso a contexto amplo de informações de fontes confiáveis acerca do processo eleitoral” e um Doodle relativo às eleições. SUSPIRO. Calma, que piora lá na frente.
O WhatsApp:
“O Brasil e sua democracia são muito importantes para o WhatsApp. E o compromisso com o país, que tem se desdobrado em iniciativas bem sucedidas em inúmeras frentes, revela-se, especialmente, nesta parceria com o TSE e a Justiça Eleitoral.”
Em miúdos: o WhatsApp deu ao TSE acesso à sua API para ter um canal oficial no mensageiro, treinamentos para funcionários do TSE e TREs e figurinhas. Olha lá eles de novo, não há desinformação que sobreviva a figurinhas.
O Twitter, ainda pré-Musk:
“É nesse sentido que o Twitter reforça o seu compromisso de proteger a integridade cívica e a liberdade de expressão para as eleições deste ano. Não dependemos apenas de decisões binárias de remoção e ou exclusão de conteúdo, pois sabemos que oferecer a pessoas o contexto adequado é também uma ferramenta eficaz e importante para combater a desinformação.”
O Twitter também prometeu treinar funcionários do TSE e TREs, dar prioridade a conteúdos do TSE, incluindo Moments com posts do tribunal, ativar prompts de contexto e, olha lá eles, criar emojis.
O TikTok:
“Já trabalhamos para proteger a integridade da nossa plataforma e a segurança das pessoas que usam o nosso serviço durante o ciclo das eleições no Brasil. Sabemos que, eventualmente, há conteúdo dessa natureza [política] em nossa plataforma. E, por nós reconhecermos a importância desses temas e o impacto que o processo cívico das eleições tem para o país, nós consideramos fundamental proteger a integridade da nossa plataforma nesses momentos.”
O TikTok prometeu treinar funcionários do TSE e TREs (até onde se sabe, não em danças), criar uma página dedicada às eleições para divulgar serviços ao eleitor e apoiar transmissões do TSE.
Por fim, o Kwai:
“O enfrentamento à desinformação deve ser um esforço permanente das plataformas, com ações de mitigação dos efeitos nocivos da desinformação sobre o processo eleitoral e da disseminação de informações confiáveis e de medidas de contenção. Já atualizamos as nossas diretrizes da comunidade para reforçar os elementos de integridade e autenticidade da plataforma e o combate ao discurso de ódio.”
A fórmula é a mesma: treinamento de funcionários, página própria para eleições e apoio na divulgação de conteúdos do TSE.
Deu para notar que tem vários padrões aí, né? Oficinas de treinamento para funcionários do TSE e TREs, apoio à divulgação de conteúdos publicados pelo TSE, contextos para buscas eleitorais (aquela coisa de “Eleições no Brasil em 2022” quando você buscava por “urna eletrônica”, por exemplo) e as famigeradas figurinhas. Teve outro padrão: o estabelecimento de um canal de comunicação extrajudicial por onde as plataformas receberiam as demandas do TSE. Bom, né? Mas note que os contratos deixam claro como as plataformas entram nestes programas numa operação tartaruga — não há obrigação nenhuma da parte delas e os links problemáticos só serão removidos se infringirem as próprias regras de uso da plataforma. Quem decide essas regras? As próprias plataformas. Existem crimes tipificados no Código Penal ou na Constituição que não estão previstos nos termos. Veja o item 5.1.1 do contrato fechado entre WhatsApp e TSE.
Ou seja: pedido de golpe de estado? Mentira sobre fraude eleitoral? Se não for disparo em massa, tava liberado, campeão.
Quer outro exemplo? Item 5.1.2 do acordo fechado entre TSE e Kwai:
Deleção garantida só contas falsas e comportamento inautêntico coordenado. Se não tem nas regras e políticas, pode ficar.
Facebook, Instagram, WhatsApp, Google, YouTube, Twitter, TikTok e Kwai. Faltou alguém? O Telegram. Durante meses a Justiça brasileira tentou entrar em contato com o Telegram para convidá-lo a se juntar com as outras plataformas no programa de combate à desinformação do TSE. Todos os contatos foram inúteis. A reiterada resistência do Telegram em atender o governo brasileiro foi inversamente proporcional ao entusiasmo da extrema-direita em usá-lo: quanto mais o app ignorava, mais o radicalismo entendia que tinha encontrado ali um oásis. Até que, no dia 18 de março, o Supremo Tribunal Federal mandou bloquear totalmente o Telegram no Brasil. A ordem veio menos de um mês depois do ministro Alexandre de Moraes ordenar o bloqueio de três canais de Allan do Santos, bolsonarista e foragido da Justiça no inquérito que investiga milícias digitais por trás de campanhas antidemocráticas. Àquela altura, o fato de o Telegram ter acatado a ordem foi uma enorme surpresa dada a reiterada resistência — o Tecnocracia #61 é só sobre isso. Problema é que a ordem foi cumprida pela metade: o Telegram não mandou os metadados exigidos por Moraes, o que culminou na decisão de bloqueio total.
Após a ação, Pavel Durov, o russo fundador do Telegram, publicou mensagem no grupo oficial do app se desculpando ao STF, culpando seu sistema de e-mails e pedindo um prazo extra para enviar os dados:
“Em nome de nossa equipe, peço desculpas ao Supremo Tribunal Federal por nossa negligência. Definitivamente, poderíamos ter feito um trabalho melhor.”
Vinte e uma palavras que ruíram a certeza bolsonarista de que tinham encontrado uma plataforma para tramar golpe, mentir sobre vacina e atacar urnas eletrônicas incólumes.
Quer dizer, mesmo nas plataformas que assinaram os acordos com o TSE, foi mais ou menos isso que aconteceu.
A campanha — muitas promessas, nem todas entregues
Em 2018, nenhum órgão eleitoral estava preparado para as campanhas de desinformação articuladas de forma coordenada em redes sociais. Quem está dizendo não sou eu, mas o próprio ministro Alexandre de Moraes. Abre aspas para fala de junho de 2022:
“Em 2018, nós todos estávamos desprevenidos. Na verdade, o mundo estava desprevenido para essas milícias digitais que não são particularidade brasileira. (…) Se em 2018 a Justiça eleitoral, assim como a Justiça como um todo foi pega de surpresa, hoje eu posso garantir que a Justiça eleitoral está preparada e instrumentalizada para combater essas notícias fraudulentas, essas milícias digitais.”
Essa fala explicita algo sugerido em outra fala, ainda mais contundente, dita em outubro de 2021 durante o julgamento que levou à cassação do então deputado estadual Fernando Francischini por propagar mentiras sobre a urna eletrônica nas eleições de 2018:
“Houve disparo em massa. Houve financiamento não declarado para esses disparos. O lapso temporal pode ser impeditivo de uma condenação, mas não é impeditivo da absorção pela Justiça Eleitoral do modus operandi que foi realizado e que vai ser combatido nas eleições de 2022.”
Em suma, a falta de atenção suficiente do TSE em 2018 não se repetiria em 2022.
O julgamento de Francischini é um ponto zero, já que funciona como o que Lu Gimenez chamaria de “warning shot”: quem atacar o sistema eleitoral com mentiras vai sofrer o mesmo destino. E, desta vez, o TSE está analisando de perto.
Cartas na mesa, começa o jogo da campanha eleitoral. Eu quero me concentrar em dois assuntos principais que antecedem o primeiro turno para ilustrar o papel das plataformas nas nascentes que vão desaguar no mar do golpismo explícito das estradas bloqueadas após o segundo turno, da tentativa terrorista de invadir a sede da PF ou de explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília, dos documentos golpistas com pessoas próximas de Bolsonaro e com a barbárie destrutiva do 8 de janeiro.
O primeiro deles é a já citada mentira sobre fraude eleitoral. Quando o TSE fechou os acordos com as plataformas, a principal batalha da campanha presidencial já estava às claras há um ano. Em 8 de abril de 2021, o ministro Luís Roberto Barroso concedeu liminar mandando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, instalar a CPI da Pandemia. Dia 14 (ou seja, seis dias depois), o plenário do STF corroborou a decisão de Barroso. Foi a partir daí, segundo dados analisados pela Novelo Data e fornecidos ao jornal O Globo, que começou a onda de ataques em grande volume do bolsonarismo contra o sistema eleitoral brasileiro e em defesa do voto impresso.
Abre aspas para reportagem do jornal O Globo publicada a partir de dados fornecidos pela Novelo Data:
“Publicações sobre o voto impresso nas eleições brasileiras, bandeira defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, dispararam nas redes sociais a partir da instalação da CPI da Covid no Senado, em abril, desde quando o governo passou a sofrer o desgaste das revelações trazidas pela comissão, acentuando sua queda de popularidade. No YouTube, postagens sobre o tema nos 270 maiores canais de direita, a maioria bolsonarista, somaram 203 vídeos entre abril e a última quarta-feira. O número é mais de oito vezes maior do que os 24 vídeos compartilhados nos cinco meses anteriores. E grande parte deles dissemina a narrativa sem evidências do presidente de que há fraude nas urnas eletrônicas. Movimento semelhante ocorreu no Facebook e Instagram. As publicações sobre o assunto em páginas e grupos públicos passaram de 140 em março, para 766 em abril, segundo dados do CrowdTangle, plataforma oficial de métricas e dados das empresas. Em julho, as publicações ultrapassaram a marca de 5,4 mil.”
É bom termos cuidado para não traçar consequências a causas aleatórias, mas é de coçar a cabeça o engajamento em escala do bolsonarismo com a mentira da fraude eleitoral no momento em que o STF se posiciona. O movimento não foi o único a se coçar.
Tal qual um balé sincronizado, março de 2021 marca também o momento em que as plataformas saem do torpor inicial para agir com um pouco mais de assertividade. CPI foi instaurada no dia 8 e corroborada pelo plenário no dia 14, lembra? Dia 16 (dois dias após o plenário), o YouTube anunciou que passaria a remover vídeos mentindo sobre a efetividade da cloroquina e da ivermectina contra covid-19. É um padrão recorrente também no período: lembra quando o próprio Moraes ordenou o bloqueio do Telegram no Brasil em março de 2022? Quatro dias depois, o YouTube anunciou que não toleraria alegações de fraude na eleição de 2018. Isso quer dizer que decisões do STF fizeram as plataformas moderar ativamente seus conteúdos?
Não necessariamente. Para ilustrar o caso, vamos para 18 de julho de 2022, Palácio da Alvorada. Ali, o então presidente Jair Bolsonaro juntou embaixadores em Brasília para a fatídica apresentação mentindo sobre o sistema eleitoral. Hoje, um ano depois, a gente já sabe que a apresentação levaria à decisão de tornar Bolsonaro inelegível por oito anos. Mas, àquela altura, a seriedade do caso não estava clara para algumas entidades, especialmente a big tech. A comoção da sociedade civil foi imediata, o que, como falamos no parágrafo passado, provocou ações: em 19 de julho, o YouTube tirou do ar uma live de Bolsonaro sobre fraude eleitoral. Foi a dos embaixadores? Não, foi aquela na biblioteca do Palácio da Alvorada em que o ex-presidente agora inelegível repete as mesmas mentiras sobre as urnas. A transmissão do evento para embaixadores seguia no canal oficial de Bolsonaro e a live derrubada segue viva em outros canais. Pressionado pela imprensa, o YouTube avisou no dia 21 — ou seja, três dias depois do evento golpista — que não viu problemas nenhum na live e ela ficará no ar. A palavra do YouTube não dura três semanas: em 10 de agosto, a plataforma mudou a política para impedir alegações de fraude em 2014 e derrubou a live. O que mudou? Nada. No evento golpista para embaixadores, Bolsonaro mentia também sobre 2018, algo teoricamente proibido pelo YouTube 5 meses antes. Abre aspas para reportagem do jornal Folha de S.Paulo:
“Aos embaixadores, Bolsonaro voltou a reproduzir teorias contadas sobre o funcionamento das urnas em 2018. Ele citou que muitas pessoas queriam votar no 17, mas as urnas indicavam voto no 13, número de seu adversário, Fernando Haddad (PT).”
O que mudou entre 21 de julho e 10 de agosto? O bolsonarismo seguiu arrepiando e o resto do mundo ficou mais interessado no Brasil. Dois dias antes de o YouTube mudar seu entendimento e tirar a live do ar, o New York Times publicou editorial de Vanessa Barbara alertando sobre o perigo do golpismo e Bolsonaro foi ao Flow, então o segundo maior podcast do Brasil, onde repetiu as mentiras sobre fraude eleitoral. No dia da mudança, o próprio Bolsonaro sugeriu que não seguiria as determinações do STF sobre o Marco Temporal. Mas entenda que tudo é conjectura — todos estes eventos são uma terça-feira no governo Bolsonaro, tão comuns quanto espalhar perdigotos no cercadinho.
Mais que manter no ar, a big tech ajudou a financiar — e lucrou — com a divulgação de mentiras sobre fraude eleitoral nas eleições de 2022, segundo diversas organizações. Estudo conjunto entre o site de jornalismo investigativo ProPublica e o laboratório NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descobriu, segundo a Folha, que “80% dos principais sites que espalham fake news se financiam com propaganda intermediada pela plataforma”. Já a ONG internacional Global Witness descobriu que tanto Google como Meta permitiram a publicação de anúncios com informações teoricamente barradas, como mentir sobre a data da eleição ou que os resultados já estavam definidos de antemão. A organização fez três (!) testes em datas diferentes até a semana anterior ao primeiro turno. Em todos, Meta e YouTube deram sinal verde para a publicação. Mesmo com o sinal verde, a Global Witness não veiculou os anúncios, já que o objetivo era avaliar o processo de aprovação de mentiras. Dos anúncios especificamente do Google no ar, o NetLab descobriu que 70% eram irregulares pelas regras eleitorais, já que não constavam CPNJ ou o aviso de se tratar de peça eleitoral. Até o último minuto o sistema foi uma peneira: mais de 200 anúncios políticos estavam sendo veiculados no Google e no YouTube durante o primeiro turno, algo proibido pelo TSE. O YouTube também permitiu que Bolsonaro veiculasse um anúncio com cenas proibidas pelo TSE — o anúncio foi visto mais de um milhão de vezes e rendeu ao Google entre R$ 7 mil e R$ 8 mil, como descobriu o Aos Fatos. Por fim, o Aos Fatos (de novo) descobriu que o Google ajudou a monetizar sites que mentiram sobre fraude eleitoral por meio do Google AdSense — segundo a investigação, a plataforma publicitária “beneficia 9 dos 10 sites hiperpartidários mais populares em grupos e canais de WhatsApp e Telegram durante as eleições”.
Com a incentivada e protegida pelo Google, Jovem Pan crava as bases do golpe
O segundo ponto que eu quero focar corre paralelamente às mentiras sobre fraude eleitoral. É a construção de uma visão na sociedade de que há um caminho dentro da legalidade para resolver o desdobramento das fraudes. Tal qual a fraude eleitoral, esse caminho legal é ilusório, fictício, delirante, mentiroso. Ao contrário da fraude eleitoral, mais do que o desinteresse, esse pilar foi incentivado por pelo menos um membro da big tech. A interpretação delirante e mentirosa do artigo 142 da Constituição ganha trampolim e toma o imaginário bolsonarista a partir da Jovem Pan. É lá que o advogado tributarista Ives Gandra defendeu em diferentes programas que o artigo permitiria que as Forças Armadas funcionassem como poder moderador. “Poder moderador” é uma expressão instituída na Constituição de 1824 pelo Império para indicar quem dá a palavra final no governo. É um conceito datado, mas na República criou-se o consenso que é do STF. A interpretação de Gandra quebrou esse entendimento e deu esperança ao bolsonarismo de que qualquer impasse entre os poderes civis (ou seja, de decisões do STF — o Judiciário — que desagradam Bolsonaro — o Executivo) pudesse ser desfeita pelas Forças Armadas de forma “legal” (várias aspas). Juristas sérios concordam que a interpretação do 142 é um delírio para justificar o golpismo.
A Jovem Pan colocou o conceito na roda e o bolsonarismo adotou. Abre aspas para uma longa reportagem da jornalista Ana Clara Costa na revista piauí sobre a radicalização da Jovem Pan4:
“Até março [de 2022], os novos vídeos defendendo o papel de árbitro das Forças Armadas tinham 411 mil visualizações. Em abril, quando Bolsonaro deu o indulto ao deputado Daniel Silveira, o símbolo da ‘luta pela liberdade’, entraram doze novos vídeos no YouTube sobre o assunto. Conseguiram reunir 2,1 milhões de visualizações – mas apenas dois deles, ambos feitos pela Jovem Pan, atraíram quase 2 milhões. Um trazia uma entrevista dada ao programa Jornal da Manhã pelo jurista Ives Gandra Martins Filho, defensor do intervencionismo militar. O outro era uma reprodução dos trechos da mesma entrevista no programa Os Pingos nos Is. Era tudo o que a bolha digital do bolsonarismo queria ver e ouvir.”
É a partir daí, impulsionado pela Jovem Pan, que o golpismo chique, de boutique, ganha corpo no bolsonarismo com um verniz de legalidade. Afinal, não seria golpe se a Constituição previsse (de novo, é delírio). Onde entra a big tech nesta história? Abre aspas de novo para a reportagem da piauí, se acomode na cadeira que o trecho é longo:
“Em março de 2019, o presidente executivo da Jovem Pan, Roberto Araújo, foi convidado pelo YouTube para fazer uma apresentação sobre o grupo na sede do Google, em Palo Alto, na Califórnia. Antes da viagem, Araújo e Tutinha fizeram uma descoberta que teria um impacto significativo no caixa da empresa. Em conversas com os executivos do Google, eles perceberam que o convite para ir a Palo Alto decorria do fato de que a Jovem Pan havia se transformado num caso mundial de sucesso para o YouTube. Com a exibição de conteúdo durante 21 horas por dia, a Jovem Pan havia se tornado a maior fonte de notícias no YouTube Brasil.
“De imediato, Tutinha e Araújo entenderam que tinham mais poder de barganha do que imaginavam para negociar os anúncios publicitários em seus canais no YouTube. Conseguiram o direito de vender a publicidade em seus vídeos na plataforma. É uma grande vantagem, já que, para a maior parte dos canais, quem detém o monopólio da venda é o próprio Google. Era o começo de um relacionamento privilegiado com a gigante da tecnologia. Um dos benefícios é que canais da Jovem Pan jamais podem ser retirados do ar por ação do algoritmo, como acontece com a maioria dos produtores de conteúdo que violem as diretrizes do YouTube. Em vez do algoritmo, entra a ação humana. Primeiro, a área de trust and safety avisa a equipe encarregada da parceria, que, por sua vez, recorre a um vice-presidente do Google para decidir se é o caso de derrubar o canal. Grandes emissoras de tevê também usufruem o mesmo benefício, mas nenhuma delas desafia tanto as diretrizes do YouTube. Com esse privilégio, a Jovem Pan sofreu a punição uma única vez: o canal do programa Direto ao Ponto foi derrubado, mas por uma razão mais prosaica. Havia violado direitos autorais.
“‘O laboratório para a Jovem Pan virar tevê foi o YouTube, com uma ajuda muito grande das equipes de parcerias do YouTube’, diz uma das fontes. ‘Ouvia-se internamente que a Jovem Pan poderia fazer o que quisesse que o canal não cairia, que eles tinham tratamento especial. E tinham mesmo.’ O privilégio abriu um campo de experimentação. Ciente de que seus canais não seriam derrubados nem desmonetizados, a Jovem Pan passou a testar diversos tipos de mensagem — incluindo discurso de ódio e desinformação, que são vetados pela plataforma. O tratamento especial chegou a gerar conflitos internos no YouTube entre os que defendiam a derrubada de canais da Jovem Pan e os que achavam que deviam ser mantidos”.
Ou seja: privilégio na moderação, que já não funciona a contento. E em termos financeiros? “Embora os tempos sejam outros para o grupo no YouTube, suas receitas com a plataforma engordaram 50%, graças ao aumento de 32% em visualizações e 49% em horas assistidas, que levantaram cerca de 20 milhões de reais, ajudando o faturamento total do grupo a ultrapassar 100 milhões de reais em 2021. (…) Nesse regime, a Jovem Pan lucrou 15,7 milhões de reais em 2021, 75% a mais do que no ano anterior”.
Lembra no começo do episódio quando falamos sobre os documentos encontrados no celular do Cid? Lembra do nome do documento com o plano para golpe de estado? “Forças Armadas como poder moderador”. Segundo a Polícia Federal, Gandra, o autor do delírio, chegou a ser consultado pelas Forças Armadas para dar um verniz de “legalidade” ao golpe. Existem outras formas de priorizar conteúdos perigosos: estudos feito pelo pesquisador João Guilherme Bastos, pesquisador do INCT.DD e diretor de reports temáticos do Democracia em Xeque, e por mim, mostrou que, entre agosto de 2022 e janeiro de 2023, o sistema de recomendação do YouTube (responsável por tocar o próximo vídeo após o que você está vendo terminou) levou usuários consumindo temas eleitorais a conteúdos da Jovem Pan mais do que qualquer outro canal. Mesmo que você começasse a ver vídeos eleitorais a partir de fontes confiáveis, como os canais do TSE ou do Manual do Mundo, o algoritmo de recomendação lentamente te direcionava a vídeos de canais da Jovem Pan que, entre outras coisas, propagavam a leitura delirante do artigo 142.
Em junho de 2023, o Ministério Público Federal (MPF) “ajuizou uma ação civil pública pedindo o cancelamento das três outorgas de frequências de radiodifusão concedidas pelo estado ao grupo Jovem Pan”, notícia da Agência Brasil. A íntegra da ação está online. Em nota, o MPF resumiu bem a atuação da rádio: “A Jovem Pan disseminou reiteradamente conteúdos que desacreditaram, sem provas, o processo eleitoral de 2022, atacaram autoridades e instituições da República, incitaram a desobediência a leis e decisões judiciais, defenderam a intervenção das Forças Armadas sobre os poderes civis constituídos e incentivaram a população a subverter a ordem política e social.” Em outras palavras, a Jovem Pan criou e alimentou a milhões de pessoas uma realidade em que o ataque à democracia brasileira era, mais que aceitável, desejável. Criou-se o ambiente dentro da cabeça de milhões de brasileiros para apoiar o golpe. A big tech não apenas permitiu e levou a mensagem com uma moderação omissa como a incentivou com acordos e parcerias comerciais como a do YouTube com a Jovem Pan.
A tentativa de golpe de estado no Brasil de 2022 (em suas diferentes formas e documentos) envolve muitas figuras, a começar pelo presidente e seu círculo mais próximo. A Jovem Pan tem um inegável papel e a permissão que a big tech deu para conteúdo golpista com o objetivo de desossar a democracia brasileira a coloca inegavelmente entre os corresponsáveis.
Foi com esta perigosa mistura de acusações mentirosas sobre fraude eleitoral e a solução para uma fraude prestes a acontecer por meio de golpe de estado que as eleições de 2022 chegaram ao primeiro turno. Durante anos, a extrema-direita teceu a rede sob os olhares omissos da big tech. No primeiro turno, foi a hora de puxá-la para ver se trazia alguma coisa. Se aquele esforço de anos lapidando uma realidade paralela se transformaria em ação prática.
O bolsonarismo tentou. E, sem surpresa nenhuma, a big tech preferiu o cômodo papel de sorrir, sugerir interesse e deixar tudo mais ou menos igual. Até o momento em que a extrema-direita cumpriu o que vinha prometendo. Quando o discurso passou para a prática, a big tech entendeu que a bomba poderia estourar no seu colo e tratou de travar uma guerra aberta, deixando claro que a preocupação é muito mais consigo mesma do que com a sociedade.
No próximo episódio, a gente fala sobre as eleições no primeiro e segundo turno, os bloqueios de estradas, a tentativa de ataque terrorista em Brasília, a tentativa de golpe de estado na barbárie de 8 de janeiro e como a big tech se aliou exatamente aos que apoiaram tudo isso para evitar não só a responsabilização, como também a regulamentação.
Um agradecimento público aos ouvintes que gentilmente emprestaram suas vozes às inglórias palavras dos executivos da big tech: Felipe Barros, Rogério Christofoletti, Aline Boueri, Alvaro Justen, Patricia Mota e Josie Pinheiro.
Foto do topo: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
- Guarde essas duas últimas palavrinhas, falaremos delas adiante. ↩
- Finalmente eu achei um jeito de citar o Celso no Tecnocracia. ↩
- Full disclosure: a Novelo Data faz parte do programa a convite do TSE. O contrato do acordo está disponível online. A Novelo Data ganhou 0 reais pela participação. ↩
- Full disclosure: a Novelo Data foi chamada pela piauí para analisar centenas de episódios de programas da Jovem Pan no YouTube, além de produzir um vídeo que viralizou no Twitter mostrando como a Jovem Pan mudou de posição em temas como poder moderador, indulto e Roberto Jefferson ao se alinhar ao governo Bolsonaro. ↩
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